O uso correto do termo “consagração” - Gotas de Liturgia
Alberto Bekeuser
A consagração se faz a Deus. E a consagração a Nossa
Senhora? Em si não se consagra a Nossa Senhora. Talvez alguém estranhe esta
afirmação. Então, vamos por partes.
Consagração vem do latim consecrare, consecratio, e
significa ação de consagrar aos deuses; dedicar aos deuses, tornar sagrado.
Temos ainda o verbo sacrare que significa consagrar, votar a uma divindade,
dedicar, tornar sagrado, celebrar.
Em português a palavra consagração foi adquirindo um sentido
mais amplo: honra ou aplauso manifestado pela opinião pública, exaltação,
glorificação. A palavra é usada também para indicar a parte da missa em que o
pão e o vinho são transubstanciados no corpo e sangue de Cristo; cerimônia em
que se sagra um bispo; cerimônia praticada na profissão monástica; oferecer por
culto ou voto: consagrar o recém-nascido a Nossa Senhora. Pode significar
também oferecer afetuosamente; dedicar.
A partir de uma teologia litúrgica nos últimos decênios,
usa-se na Liturgia a palavra consagração no sentido mais estrito. Abandonou-se
o termo consagração e sagração episcopal. O Ritual das Ordenações fala em
“ordenação episcopal”, e não, “sagração” episcopal. Não se diz mais “sagrante
principal”, mas “ordenante principal”. A oração principal é chamada “prece de
ordenação”. O mesmo se diga em relação às igrejas e altares. Abandonou-se o
termo “consagração” de uma igreja ou de um altar. Usa-se o termo “dedicação” de
igreja, “dedicação” de altar.
Esta mudança no uso do termo consagrar reservado para a
dedicação ou oferta a Deus, também foi adotada no Ritual do Batismo. Não se usa
mais o termo “consagração” a Nossa Senhora ou madrinha de “consagração”. O
próprio batismo constitui a verdadeira consagração a Deus. Sugere-se a palavra
“entrega” a Nossa Senhora ou colocar sob a proteção de Nossa Senhora. O Ritual
do Batismo diz: “Onde for costume, no final da celebração, pode realizar-se um
ato de devoção a Maria, confiando à sua proteção a vida e a fé das crianças”.
Quem confia a criança à proteção de Maria são os pais. Não se prevê “madrinha
de consagração”. Mas seria bom abandonar o termo “consagração”, reservando-o
para Deus.
A própria Santa Sé tem-se manifestado a respeito do uso do
termo consagração. No Diretório sobre a Piedade Popular e Liturgia, tratando da
“Veneração da Santa Mãe do Senhor”, no item “A consagração/abandono a Maria” se
diz: “À luz do testamento de Cristo (cf. Jo 19,25-27), o ato de “consagração”
é, de fato, reconhecimento consciente do lugar especial que Maria de Nazaré
ocupa no mistério de Cristo e da Igreja, do valor exemplar e universal do seu
testemunho evangélico, da confiança em sua intercessão e na eficácia de sua
proteção, da múltipla função materna que ela exerce, como verdadeira mãe na
ordem da graça, em favor de todos e de cada um de seus filhos. Entretanto,
nota-se que o termo “consagração” é usado com certa amplidão e impropriedade.
Por exemplo, diz-se ‘consagrar as crianças a Nossa Senhora’, quando na
realidade se entende apenas colocar os pequenos sob a proteção da Virgem e
pedir para eles a sua materna bênção. Compreende-se também a sugestão de
utilizar, no lugar de “consagração”, outros termos, tais como “entrega”,
“doação”.
De fato, em nosso tempo, os progressos realizados pela
teologia litúrgica e a consequente exigência de um uso rigoroso dos termos,
sugerem que se reserve o termo consagração à oferta de si mesmo que tem como
meta Deus, como características, a totalidade e a perpetuidade, como garantia,
a intervenção da Igreja, como fundamentos, os sacramentos do batismo e da
confirmação” (n. 204). Fazemos votos que esta terminologia também mude no
Santuário Nacional de Aparecida em que os devotos são solenemente confiados ou
entregues a Maria, padroeira e rainha do povo brasileiro.
36. Sacerdote
Pela unção na cabeça logo após o batismo, o cristão é ungido
rei, sacerdote e profeta, dignidade que ele adquiriu no próprio batismo.
Gostaria de refletir com os leitores sobre a natureza e a dignidade do
sacerdócio. O que é mesmo ser sacerdote.
Sacerdócio e sacerdote têm praticamente o mesmo sentido.
Sacerdote, do latim, vem de sacer e dos. Sacer significa sagrado, divino. Dos
significa dom, ou dote.
Termo comum de dois, sacerdote, no fundo, significa: dom
sagrado, dom divino, dom de Deus. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem
é sacerdote, chamado a reconhecer a sua vida como dom de Deus e transformar sua
vida num dom ou oferta a Deus.
O sacerdote é chamado a “sacrificar”, termo que também deve
ser bem entendido. Sacrificar é tornar sagrado, santo, tornar divino ou fazer
coisa divina. Assim, o ser humano pela própria criação é chamado a sacrificar,
orientando e oferecendo a Deus a própria vida.
Por causa da ruptura com Deus pelo pecado da desobediência,
o ser humano não mais quis reconhecer a vida como dom de Deus e orientá-la
totalmente a Ele. Quis, sim, apropriar-se dela como propriedade sua. Símbolo
disso é o comer da fruta proibida para ser como Deus.
Mas, Deus é misericordioso. Já no Antigo Testamento escolheu
um povo como “um reino de sacerdotes” (cf. Ex 19,6). Pelo fato de o povo ser
infiel a esta sua vocação de reis e sacerdotes, Deus escolhe homens para ajudar
o povo a viver como sacerdotes. Estes oferecem a Deus os “sacrifícios” em nome
do povo, tornando-se mediadores entre Deus e o seu povo. Daí vão surgindo, como
entre quase todos os povos primitivos, os “sacrifícios”, as ofertas a Deus,
significando a oferta da própria vida. Ora, é aceitando ser mortal que o ser
humano melhor pode reconhecer que a vida vem de Deus, é dom de Deus e não
propriedade sua. Por isso, mata animais e os oferece a Deus. A morte é a maior
experiência da condição de criatura do ser humano. Vem daí a prática da
imolação da vítima, a morte ligada ao sacrifício. Os profetas e os salmos
ensinam, porém, que o mais perfeito sacrifício a Deus é o sacrifício de louvor,
o sacrifício da ação de graças. É oferecer a Deus um coração contrito e
humilhado.
Ora, Jesus foi o grande mediador entre Deus e a humanidade.
Foi exemplo de sacerdote para a humanidade em sua vida mortal, aprendendo a
obediência entre preces, súplicas e sofrimentos (cf. Hb 5,7-10). Pela
obediência ele reconheceu que sua humanidade era dom de Deus. Expressou esta
obediência amorosa ao Pai por sua morte, a grande oferta, a grande oblação de
sua vida ao Pai: “Em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
Cristo assumiu em si toda a humanidade. Por Ele, a
humanidade pode tornar-se de novo, uma oblação, um sacrifício agradável a Deus.
Jesus Cristo é, assim, o Sumo Sacerdote, o único verdadeiro sacerdote. Mas, ele
partilha o seu sacerdócio, concedendo que, pelo seu Espírito, todos os que nele
creem e esperam possam viver sua vocação sacerdotal: acolher a vida como dom de
Deus e orientá-la, oferecê-la totalmente a Ele. Pedro afirma: “Vós sois a
geração escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo que ele conquistou para
proclamar os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para a sua luz
admirável” (1Pd 2,9).
O sacerdócio dos cristãos, sobretudo, o sacerdócio universal
do batismo, é participação no sacerdócio de Cristo. Jesus, por sua vez,
escolheu pessoas que, na força do Espírito Santo, exercem o sacerdócio
ministerial. Ministerial porque a serviço de todo um povo sacerdotal. Nos
primeiros séculos, os cristãos evitavam o uso do termo sacerdote para expressar
o novo sacerdotal em Cristo Jesus. Os ministros ordenados, vistos na tríplice
função messiânica de Cristo, profeta, sacerdote e rei, eram chamados bispos e
presbíteros. No Rito da Ordenação, ainda hoje, o padre não é chamado de
sacerdote, mas de presbítero. Os ministros ordenados são, em Cristo, os grandes
mediadores entre Deus os homens. Por isso, demos graças a Deus!